Por André Azenha
Não foram poucas vezes: jovens de determinado segmento cultural romperam com o que havia sido feito até então. Consideraram trabalhos artísticos obsoletos e chamaram a atenção da mídia e do público por apresentarem obras, teorias, técnicas, absolutamente diferentes. Foi assim na música, a exemplo do punk rock, contrariando o rock progressivo vigente. Sorte que, eventualmente, os anos se encarregaram de fazer justiça. Exemplo: o Cinema Novo, que desconsiderou Anselmo Duarte, cineasta cuja importância para o cinema nacional felizmente acabou revista, ganhando um belíssimo exemplar na Coleção Aplauso.
Triste é que muitos injustiçados não sobrevivem a tempo de ver o reparo. Um episódio, talvez ainda mais triste, de um talento quase destruído pela jovem crítica italiana da virada dos anos 50 para os 60, foi Valério Zurlini (1926-1982). Tudo por que o diretor não se enquadrava na turma de Fellini, De Sica, etc. Filmava em estilo clássico. Não menos fascinante que os colegas. A obra do cineasta foi reavaliada e recebeu o status merecido: de grande artesão e realizador cinematográfico. Infelizmente, para ele, o reconhecimento veio após sua morte.
A Moça com a Valise é o responsável pela revisão. História sobre gente do bem fadada ao amor desiludido. Obra sensível, que mostra a capacidade de Zurlini em extrair o melhor dos atores, traz Claudia Cardinale no auge da beleza (uma das atrizes mais belas da história do cinema), imagens e sequencias memoráveis, trilha sonora com o melhor do cancioneiro italiano daquele período.
A trama inicia com a jovem e bela cantora Aida Zepponi (Cardinale) sozinha em Parma, após ser abandonada por Marcello (Corrado Pani). Ele lhe prometera crescimento profissional, sucesso, amor, e todo aquele papo de galanteador barato. Frustrada e furiosa, ela consegue localizar o endereço do rapaz. Quando a campainha da mansão toca, Marcello pede ao irmão mais novo, Lorenzo (Jacques Perrin), que se livre dela, invente qualquer desculpa. No entanto, numa daquelas armações do destino, surge uma forte ligação entre Aida e Lorenzo. Ela, de trinta e poucos anos. Ele, com 16. Lorenzo passa a fazer de tudo para agradá-la, emprestando-lhe dinheiro, hospedando-a em um hotel caro, telefonando no meio da noite para saber se está tudo bem. Está apaixonado. Aida gosta dele, conta com ele. No entanto, sabe que não pode retribuir o amor e não quer magoá-lo.
O longa, que inaugurou a coleção da obra de Zurlini no país em cópia restaurada, comprova o talento do diretor em conceber planos maravilhosos e entregar ao público personagens envolventes, profundos. Algumas cenas entraram para a história: a descida da escada ao som de ópera, a dança observada por Lorenzo bêbado, o abraço sofrido de Aida e Lorenzo na praia. Tudo é muito sutil, sensível, triste, porém belo. O retrato de dois seres humanos que tentam acertar, encontrar a saída, algo que faça a vida valer à pena. Há quem pergunte como Aida caiu no papo de Marcello. Há quem acredite nas pessoas. Fotografia, montagem, música e atuações ajudam a criar a história de amor que não pode ser consumado.
Cardinale e Perrin catalisam nossa atenção. A primeira, linda, numa época em que ser bonita não significava ter corpo esquelético, é a escolha perfeita para o papel. Foi dublada, é verdade, dizem por causa da voz um tanto rouca. A partir dali, no entanto, se tornaria grande atriz. O segundo confere ingenuidade e garra ao personagem. Depois, estaria na obra prima de Zurlini, Dois Destinos.
O roteiro existia há algum tempo. E teria sido baseado em fatos reais: Zurlini conheceu uma atriz famosa que viveu a história.
Para se entender o contexto do lançamento de A Moça com a Valise, a importância do filme e do diretor, vale conferir os ótimos extras do DVD: há entrevistas com produtor, assistente de direção, um crítico de cinema italiano e apresentação do crítico brasileiro Rubens Ewald Filho, ardoroso admirador e conhecedor do cinema daquele país.
Zurlini morreu sem conseguir filmar alguns projetos. Seu último longa, O Deserto dos Tártaros, foi lançado seis anos antes de falecer. Não teve o devido reconhecimento em vida. Não foi a primeira e nem será a última injustiça cometida por artistas, especialistas, público. O que muita gente não entende é que, para se compreender o presente e planejar o futuro, é preciso conhecer o passado. A filmografia de Zurlini não só merece ser conhecida, como admirada.
A Moça com a Valise
La ragazza con la valigia.
Itália / França, 1961.
Direção: Valerio Zurlini.
Com Claudia Cardinali, Jacques Perrin, Corrado Pani, Luciana Angiolillo, Renato Baldini, Riccardo Garrone, Elsa Albani, Gian Maria Volonté, Romolo Valli.
111 minutos.
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