Quem nunca desejou apagar alguém da memória? Seja para esquecer um grande amor, ou uma pessoa que lhe tenha feito mal? Esse é o tipo de situação que se repete não uma, duas, mas várias vezes durante nossas vidas. Nos apaixonamos, amamos, compartilhamos nosso dia-a-dia. Depois a relação se desgasta, não dá certo, acaba. Não importa quem rompeu, se foi bilateral, se acabou bem, mal. Mergulhamos em conflitos pessoais. Refletimos, nos arrependemos, e até sentimos raiva. E é nessa hora que, se pudéssemos, “deletaríamos” tudo o que vivemos naqueles últimos tempos, sem parar para pensar que talvez tenhamos presenciado um aprendizado.
Pois é,
esse turbilhão de pensamentos, sentimentos e sensações é normal. Devíamos estar
calejados, porém sempre que volta a acontecer, nos flagramos sofrendo tudo
novamente, igualzinho. E é simplesmente genial o fato de, Charlie Kaufman,
roteirista criativo, autor de textos no mínimo inusitados como os dos filmes Quero
ser John Malkovich (1999), e Adaptação (2002),
ambos em parceria com o diretor Spike Jonze, e Natureza Quase Humana,
dirigido por Michel Gondry (que fez videoclipes da banda inglesa Radiohead),
tenha realizado seu trabalho mais original a partir de algo tão batido na vida
do ser humano. Trata-se de Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças, cujo lançamento nos EUA, foi em 19 de março de
2004, aqui, em 23 de julho.
O longa, de título retirado do poema Eloisa
to Abelardé, de Alexander Pope, que Charlie Kaufman já
havia usado em Quero Ser Johm Malkovich,
é uma pequena obra-prima do século XXI, um trabalho cinematográfico que paquera
a ficção-científica, mas usa poucos – e eficientes – efeitos visuais,
ancorando-se principalmente em seu roteiro inovador (premiado com justiça no
Oscar) e um excelente elenco. É um filme tecnicamente simples, entretanto
atinge profundamente o espectador.
Para dar
vida a esse romance contemporâneo, os produtores escolheram um casal nada
convencional: Jim Carrey e Kate Winslet.
Ele,
provando ser um bom ator dramático (já havia mostrado o potencial em O
Show de Truman), injustamente ignorado nas premiações,
interpreta Joel, sujeito tímido, que, segundo ele mesmo, se apaixona por toda
mulher que lhe retribui qualquer tipo de contato.
Ela, em mais uma atuação de encher os olhos, foi indicada ao
Oscar (prêmio que só levaria em 2009, por O Leitor), ao viver
Clementine, garota maluquete, tagarela, temperamental, que troca a cor do
cabelo conforme o sentimento da vez.
A
escalação da dupla, se podia causar algum tipo de dúvida antes do longa ganhar
as salas de projeção, tornou-se um tremendo acerto. Há uma química diferente
entre eles, que conseguem transmitir, beirando a perfeição, as qualidades e os
defeitos de duas pessoas extremamente diferentes, que ao mesmo tempo se
completam. Trata-se de um romance, mas sem a pompa hollywoodiana. São pessoas
reais, que poderiam ser nossos vizinhos. E por isso mesmo há uma identificação
entre personagem e plateia. Torcemos por eles.
Mas não
são apenas os dois que chamam a atenção. Cada ator tem seu momento. Tom
Wilkinson, Mark Ruffalo, Elijah Wood, Kirsten Dunst e o restante do elenco.
Todos, sem exceção, protagonizam pelo menos uma grande cena. E não é necessária
uma catarse para cada artista revelar seus dotes dramáticos. A entrega de cada
ator está embutida em pequenos gestos, olhares, momentos quase silenciosos.
Joe e Clementine namoravam, só que num impulso gerado pelo
desgaste da relação, ela procura uma clínica (onde o proprietário é Tom
Wilkinson) que apaga as memórias das pessoas. Ao descobrir a ação da amada, Joe
decide fazer o mesmo. Só que, durante o processo, se arrepende, e tenta salvar
suas lembranças, num conflito que acontece dentro de seu próprio cérebro.
O texto
não é linear. É “viajandão”. Exige certa atenção do público. E Gondry soube
como dirigir esses instantes sem recorrer a clichês, filmando a cidade em tons
quase cinzentos, utilizando o frio para dar ênfase à solidão dos personagens, e
alternando sequencias sublimes, como aquela em que Carrey e Winslet deitam
sobre um lago congelado, ou nas cenas em que a “memória” de Joe luta, dentro da
sua mente, para não ser apagada. Uma história que acredita no destino, porém
não dá o seu recado de maneira brega nem didática.
Brilho Eterno ainda foi premiado em
Edição e Roteiro no BAFTA, Atriz (Kate) e Roteiro pelos Críticos de Londres, e
venceu mais 30 prêmios ao redor do mundo. Foi o melhor filme de 2004 e um dos
melhores e mais sensíveis de sua década.
E mesmo
que um dia a tal clínica especializada em apagar as lembranças das pessoas possa
existir, eis um filme apaixonante que jamais sairá da memória de quem o
assistir.
Brilho
Eterno de uma Mente Sem Lembranças
Eternal Sunshine of the Spotless Mind
EUA, 2004.
Direção: Michel Gondry.
Roteiro: Charlie Kaufman, baseado em estória de Charlie Kaufman, Michel Gondry
e Pierre Bismuth.
Com Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Elijah Wood, Mark Ruffalo, Tom
Wilkinson, Jane Adams, Deirdre O’Connell.
108 minutos.
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