Graças a um trailer matador, ao som de Iron Man, do Black Sabbath, e respaldo positivo do público na Comic-Con, Homem de Ferro surgiu com a melhor das expectativas para abrir uma temporada de blockbusters num ano que teve Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, As Crônicas de Nármia – Príncipe Caspian, o decepcionante Speed Racer e o excepcional Batman: O Cavaleiro das Trevas. O marketing espontâneo foi tão forte que o público-alvo já parecia convencido de que Robert Downey Jr realmente era Tony Stark, o industrial milionário, fabricante de armas, playboy e alcoólatra, que os leitores de quadrinhos admiravam como Homem de Ferro.
Downey, que concorreu ao Oscar ao viver Charles Chaplin numa produção premiada de 1992, foi uma definição polêmica por seu passado tumultuado. O ator foi preso diversas vezes por estar sob efeito de drogas, internado em três clínicas de reabilitação e chegou a passar um ano inteiro na cadeia na virada do milênio. Sóbrio e disposto a dar a volta por cima, ele participara de uma série de filmes aprovados pela crítica (Zodíaco, Santos e Demônios, Beijos e Tiros e A Pele), mas ninguém havia ainda se arriscado a colocá-lo à frente de uma superprodução.
A escolha sabiamente era bancada pelo diretor John Favreay, inclusive ele uma escalação inusitada para esse tipo de filme e igualmente bem-sucedido na empreitada. Favreau até então era mais conhecido por seu trabalho de ator. Os fãs de super-heróis se lembravam dele como “Foggy” Nelson, o melhor amigo de Matt Murdock em O Demolidor (2003). Na direção, assinara até então três filmes, todos comédias e apenas um com ênfase em efeitos especiais – Zathura – Uma Aventura Espacial (2005). Homem de Ferro mudou o destino dos dois envolvidos: Favreau provou ser capaz de se dar bem com um grande orçamento e Downey se mostrou um astro sério, cujo tom irônico casou perfeitamente com a natureza do personagem. Ambos passariam a ser figurinhas carimbadas da Marvel nos cinemas e a estrelar ou dirigir grandes produções de sucessos da Disney e outros estúdios.
O filme fez a divisão cinematográfica da Marvel Comics se revelar competente ao transpor para a telona um personagem seu – antes do longa, a editora de gibis vendia os direitos de seus heróis para outras empresas e via resultados bons a exemplos de X-Men (2000) e Homem-Aranha (2002) e bombas tipo o Capitão América (1990) e Elektra (2005). Desta vez, todos os gastos correram por conta da Marvel, deixando a Paramount Pictures apenas parceira na distribuição. A aposta na visão de Favreau ecoou ironicamente, o perfil “alternativo” da direção de Christopher Nolan em Batman Begins, franquia de sua maior rival nos quadrinhos, a DC Comics. A ideia do diretor em criar uma superprodução que não perdesse sua essência artística foi assumidamente inspirada no filme de Nolan. Antes de se enveredar por Asgard ou os Guardiões da Galáxia cruzarem o universo, o Marvel Studios levou ao público uma história caldada em tecnologia.
E para sair bem sucedida, convocou bom elenco: além de Downey, vimos Gwyneth Paltrow pela primeira vez num filme de ação. A atriz, que costumava se identificar com dramas e comédias, optou por Homem de Ferro “pelos nomes envolvidos”. Vencedora – injustamente - do Oscar de Melhor Atriz por sua atuação em Shakespeare Apaixonado (1998), a esposa de Chris Martin, vocalista da banda Coldplay, tinha se afastado do cinema para cuidar dos filhos e, surpresa geral, escolheu voltar à ativa numa adaptação dos quadrinhos.
Quem também ficou empolgado com a chance de contracenar com Robert Downey Jr. foi Terrence Howard, outro intérprete de peso, indicado ao Oscar de Melhor Ator por Ritmo de um Sonho (2005). Em Homem de Ferro, ele viveu um dos melhores amigos de Tony Stark, o piloto James Rhodes, militar de alta graduação e aviador – a partir de Homem de Ferro 2 o personagem passaria a ser interpretado por Don Cheadle (Crash – No Limite). Para viver o vilão foi escalado Jeff Bridges, astro de O Grande Lebowski (1998) e O Pescador de Ilusões (1991), entre inúmeros filmes. “The Dude” incorporou com maestria o industrial Obadiah Stane, grande rival de Stark, que no filme está por trás de sua prisão no Oriente Médio.
No início, curiosamente, Favreau admitiu preferir atores desconhecidos do grande público, tal qual aconteceu com Brandon Routh em Superman, O Retorno (2006). Porém, acabou se rendendo ao talento de Robert Downey Jr. e, quando se deu conta, estava com um super time em campo. Fora o elenco, Homem de Ferro destaca efeitos convincentes, sequências de tirar o fôlego, armamento pesado, uma trilha sonora em volume máximo e uma mescla de aventura e drama, com toques de humor.
Criado por Stan Lee e os desenhistas Jack Kirby e Don Heck, o Homem de Ferro apareceu pela primeira vez na edição 30 da revista Tales of Suspense, em 1963. No enredo original, Tony Stark desenvolveu o protótipo da armadura após ser capturado por inimigos durante a guerra do Vietnã. Era basicamente um herói anticomunista, que combatia ameaças soviéticas (Viúva Negra, Dínamo Escarlate, Homem de Titânio) e comandava a indústria armamentista, em favor da defesa nacional dos EUA. Mas, com o tempo, o personagem se tornou mais complexo, mostrando um lado vulnerável, principalmente em histórias sobre sua luta contra o alcoolismo e o aparecimento de um complexo de culpa pela destruição causada por seus negócios. Nos gibis, o Homem de Ferro se tornou um dos maiores símbolos da inventividade e dos defeitos da humanidade.
No trama do cinema - há também um longa de animação, lançado em DVD, chamado O Invencível Homem de Ferro, de 2007, em que a origem do protagonista ganhou outra versão - ele não é mais um herói simpático para fazer a alegria da garotada, não é altruísta tipo o Superman, muito pelo contrário. É um sujeito vaidoso e mulherengo. Sua personalidade controvertida não tem nada a ver com adaptações anteriores de heróis da Marvel - Homem-Aranha ou Quarteto Fantástico. Muito pelo contrário, é um sujeito linha dura, ainda que salte à tela um pouco de bom humor e ironia. O roteiro escrito por Art Marcum, Matt Holloway, Mark Fergus e Hawk Otsby apostou acertadamente em dar uma trajetória “real” para a criação do herói. É a clássica trama de origem e apresenta Tony Stark (Downey Jr.) interpretando um jovem inventor que dirige uma milionária fábrica de armas para as Forças Armadas. Ao visitar o Iraque, ele é preso por inimigos numa emboscada. Durante a captura, fragmentos metálicos de uma explosão atingem seu peito e chegam ao coração. Sua vida é salva por um cientista, também prisioneiro dos iraquianos, que usa uma bateria de carro para criar um aparelho que mantém o coração de Stark funcionando.
Em cativeiro, os dois são coagidos a criar uma arma de destruição em massa. Aproveitando-se da chance, criam uma armadura especial para fugir, mas o inventor se sacrifica por Tony, que é resgatado. De volta a Nova York, Stark reencontra sua secretária e interesse romântico, Virgínia “Pepper” Potts (Paltrow), e precisa enfrentar perguntas de uma repórter (Leslie Bibb) que o considera um mercador da morte. O grande vilão é o executivo Obadiah Stane (Bridges), aparentemente amigo de Stark, porém invejoso e ambicioso a ponto de querer tomar os negócios da empresa. Ao ver Tony ter sucesso na criação de uma nova e avançada armadura de ferro (chamada Mark III), Stane decide criar a sua versão da máquina.
Não faltam referências: do possível surgimento do Máquina da Morte em produções futuras, e a criação da agência SHIELD (graças à presença do Agente Coulson, vivido por Clark Gregg e criado para o filme) e até o escudo do Capitão América é mostrado de forma bem sutil. E, para manter a tradição, quem também faz uma rápida participação é o criador do personagem, Stan Lee. Após os créditos, quem dá as caras é Samuel L. Jackson, como Nick Fury, cena que fez os fãs da Marvel darem início ao oba-oba para o futuro longa dos Vingadores, que arrebataria o mundo quatro anos depois.
É preciso ressaltar que o Marvel Studios não tinha um plano de lançamentos bem planejado como faria alguns anos depois. Há a cena pós-créditos. O Incrível Hulk, do mesmo ano, contaria com ponta de Downey Jr. para fazer a ligação. No entanto, a tal Iniciativa Vingadores dita por Nick Fury seria ignorada e o estúdio só apostou para valer no universo compartilhado a partir do filme da equipe.
Intencionalmente ou não, a obra foi suficiente para dar a partida no maior universo compartilhado já visto na história do cinema, com dezenas de produções lançadas desde então e várias vezes Downey Jr. retornando ao papel.
A ligação do astro com Tony Stark sim, pode ser comparada a de Christopher Reeve com o Homem de Aço e a de Hugh Jackman com Wolverine: casos nos quais dificilmente conseguimos enxergar outros atores vivendo aqueles heróis.
O resto é história...
Homem de Ferro
Iron Man
EUA, 2008.
Direção: Jon Favreau.
Com Robert Downey Jr., Terrence Howard, Gwyneth Paltrow, Jeff Bridges, Shaun Toub, Leslie Bibb, Samuel L. Jackson, Jon Favreau.
O site do crítico de cinema, pesquisador, escritor, produtor cultural, curador e jornalista. Aqui publicamos críticas, textos sobre filmes, séries e novelas clássicos e lançamentos, curiosidades, miniibiografias e listas. O editor André Azenha é Doutorando em Comunicação Audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi, onde também concluiu o Mestrado. Editor do site Histórias do Cinema e da TV (e do canal homônimo do YouTube). Diretor do Santos Film Fest – Festival Internacional de Cinema de Santos. Coordenador do Instituto CineZen Cultural e da CineZen Edições Literárias. Autor de Filmes que Marcaram a Cultura Pop, Grandes Curtas: Curtas-Metragens de Grandes Cineastas, Rubens Ewald Filho: Vida de Cinema! e Adelia Sampaio: O Segredo da Rosa (todos estes de 2021, pela CineZen Edições Literárias), A Era dos Boçais (de poemas, 2021), Batman: A Série Animada - Uma Revolução dos Heróis na TV (Amavisse, 2020), Histórias: Batman e Superman no Cinema (2016), Coletânea CineZen 2012, Costelas Felinas) e Poesia a Quatro Mãos (2008, de poemas). Realizou exposições sobre cinema e cultura geek, fóruns culturais e mais de 100 sessões de filmes seguidas de bate-papos em sua cidade-natal.
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