O universo das animações na década de 1940 e 1950 foi palco de criações memoráveis que marcaram gerações, e dois dos personagens mais emblemáticos desse período é, sem dúvida, Papa Léguas e Coiote. Criado em 1948 pelos lendários Chuck Jones e Michael Maltese, o desenho do ágil e inabalável corredor que vive a escapar das engenhosas, porém desastradas, armadilhas do Coiote tornou-se um ícone da cultura pop. Quando os roteiristas da Warner Bros. decidiram que precisavam de um novo tipo de curta, a única coisa que todos concordaram foi parodiar os desenhos de perseguição no estilo Tom & Jerry. Chuck Jones, de olhar afiado para o humor físico, percebeu que uma dupla como Papa Léguas e Coiote poderia trazer uma nova dimensão à comédia animada. O próprio Wile E. Coiote, no original , foi inspirado por um personagem do livro Roughing It, de Mark Twain, onde um coiote é descrito como "um esqueleto alto, magrelo e doente, uma alegoria viva de Desejo." A aparência magra e faminta de Wile E. é baseada no animador Ken Harris, e seu nome é um trocadilho com a palavra "wily", que significa astuto.
A trama é simples e brilhantemente executada. O faminto Wile E. Coyote, residente de um deserto repleto de rodovias, tenta de todas as formas capturar o ágil Papa Léguas que, astuto, veloz e com uma dose absurda de sorte, sempre escapa ileso. Para suas armadilhas, o "vilão" conta com os produtos da fictícia Acme, uma empresa que fabrica de tudo e se tornou sinônimo de fracassos cômicos. Cada episódio culmina em tentativas desastrosas do Coiote, que invariavelmente termina vítima das próprias engenhocas. Curiosamente, a simpatia do público muitas vezes se volta para o predador frustrado, que, apesar de todas as falhas, jamais desiste da empreitada. É difícil não rir ao ver o Coiote empurrando o próprio abrigo para uma encosta enquanto o Papa Léguas, com sua típica indiferença, simplesmente o observa do alto da colina. Às vezes, até começamos a torcer pelo Coiote, com quem nos solidarizamos.
Inspirado no humor físico de mestres do cinema mudo, especialmente Charles Chaplin e Buster Keaton, o desenho praticamente não possui diálogos, o que o aproxima dos clássicos do cinema da era pré-sonora. Assim como Chaplin e seu icônico Vagabundo e Keaton com suas acrobacias, o humor de Papa Léguas e Coiote reside na expressão corporal, nos movimentos exagerados e no timing impecável das gags visuais. O grito "Beep Beep!" do Papa Léguas é a única "fala" presente, mas carrega uma carga de significados e provoca risadas a partir de sua simplicidade. Em contraste, Wile E. Coyote, apesar de geralmente mudo, comunica suas emoções com placas que exibem frases como "uh-oh" e "ai". Em suas poucas falas, como nas interações com Pernalonga, sua voz é feita por Mel Blanc, com um sotaque britânico que contrasta com a imagem de gênio autoproclamado do Coiote.
O cenário da animação no final dos anos 1940 era dominado por personagens tipo Pernalonga, Patolino e o Gaguinho, mas Papa Léguas trouxe algo novo ao segmento. Em um tempo em que a televisão começava a ganhar espaço nas salas de estar, as animações precisavam se reinventar para manter a atenção de um público que começava a ter mais opções de entretenimento. A simplicidade da fórmula, combinada com o ritmo frenético da perseguição e a genialidade de Jones e Maltese, fez o desenho se destacar em meio a tantas outras produções.
Os episódios, ao todo 48 curtas animados produzidos entre 1949 e 2014, variam em duração e seguem um padrão de qualidade inquestionável. O deserto, cenário onde se desenrola a maioria das histórias, é quase um personagem por si só, com paisagens áridas e montanhas imponentes. O impacto de Papa Léguas foi tão grande que os personagens apareceram em outras mídias e produções, incluindo o cinema nos filmes Space Jam e Looney Tunes: De Volta à Ação. Papa Léguas foi protagonista de jogos eletrônicos e campanhas publicitárias. Em Wabbit - A Looney Tunes Production, o Coiote volta a tentar capturar o Papa Léguas e, também, o Pernalonga, criando situações ainda mais cômicas ao misturar as duas dinâmicas.
O seriado encontrou sua casa inicialmente na CBS (1949-1960), depois na ABC (1961-1965), onde encantou milhões de telespectadores. No Brasil, o Papa Léguas e Coiote começaram a ganhar notoriedade na TV Tupi em 1966, seguidos pela exibição na Rede Globo de 1982 a 1986. Mais tarde, o desenho passou a fazer parte do Sábado Animado no SBT (1990-1996) e, posteriormente, foi exibido no Cartoon Network (1993-2007) e no Boomerang (2003-2018). Em sua longa trajetória, o show também passou pela Record TV e pelo canal de TV por assinatura MultiShow, sempre garantindo uma risada nostálgica dos telespectadores.
As cenas mais memoráveis, como o Coiote tentando se catapultar em direção ao Papa Léguas ou utilizando um par de patins-foguete, são marcos do humor pastelão. E a cada nova tentativa fracassada, o espectador se delicia com a esperteza do pássaro e a ingenuidade trágica do Coiote. A genialidade de Jones está em sua habilidade de manter cada episódio fresco e surpreendente, mesmo dentro de uma fórmula aparentemente repetitiva.
No livro Chuck Amuck de 1989, Chuck Jones revelou os 10 Mandamentos"l do desenho do Papa Léguas, que guiavam a produção dos episódios. Essas regras incluíam preceitos a exemplos de "O Papa Léguas não pode prejudicar o Coiote; ele só deve correr e fazer 'beep-beep'", "Wile E. Coyote poderia acabar com sua caçada a qualquer momento – não fosse ele um fanático", e "O Coiote não pode ser afetado por nenhuma força externa: seu fracasso deve advir unicamente do uso de produtos Acme ou de sua própria estupidez". Essas diretrizes acabaram muitas vezes violadas.
No fundo, Papa Léguas e Coiote representam a eterna luta entre desejo e realização, entre sonho e realidade. O Coiote, de fome insaciável, simboliza todos os nossos desejos não realizados, enquanto o Papa Léguas, com sua velocidade e inacessibilidade, é aquilo que está sempre além do nosso alcance. O humor nasce da identificação, pois quem nunca se sentiu um pouco como o Coiote, com grandes planos que nunca saem como o esperado?
Apesar de mais de 70 anos terem se passado desde sua criação, Papa Léguas e Coiote continuam lembrados com carinho por fãs de todas as idades. A simplicidade da premissa e a universalidade do humor garantem que essa "dupla dinâmica" (perdão Batman e Robin) sobreviverá por muitas gerações, sempre com uma risada pronta para nos lembrar que, às vezes, o melhor plano é simplesmente correr feito o vento.
0 Comentários