Crítica | Um Completo Desconhecido: a fábula de um espírito livre e a celebração da música



Bob Dylan é, sem dúvida, um dos artistas mais complexos e enigmáticos da história da música. Sua trajetória é repleta de lacunas e mistérios, momentos de sua vida — mesmo após a fama — que permanecem sem registros, algo que o próprio músico sempre fez questão de alimentar. Até mesmo em livros biográficos, há um véu de incerteza sobre certos períodos da carreira dele. Esse mistério só reforça a aura quase mitológica em torno desta figura. E, no cinema, essa característica é prato cheio para cineastas que tentam, mais do que retratar essa(s) história(s), capturar sua essência.

Já tivemos outras obras marcantes sobre Dylan. Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes, teve a sacada de usar diferentes atores para representar as múltiplas facetas do artista. O documentário No Direction Home (2005), de Martin Scorsese, com três horas de duração, é tão envolvente que o tempo simplesmente voa, mergulhando o espectador nos anos de formação e transformação de Dylan até o auge. O diretor voltaria a retratar Dylan em Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, documentário do Netflix sobre a emblemática turnê que o cantor fez em 1975.

Agora, Um Completo Desconhecido, dirigido por James Mangold — um cineasta versátil, responsável por ótimos filmes como Johnny e June (sobre a relação entre Johnny Cash e June Carter, contemporâneos de Dylan), Os Indomáveis (um western moderno), e Logan (um dos melhores filmes de heróis já feitos) — traz um recorte específico da vida de Bob: sua chegada ao cenário musical nos anos 1960.

Acompanhamos o protagonista conhecendo Woody Guthrie (Scoot McNairy, o funcionário de Bruce Wayne que fica paralítico em Batman V. Superman: A Origem da Justiça), seu grande ídolo, e Pete Seeger (Edward Norton, em grande atuação), além de explorar sua relação com Joan Baez, musa, parceira artística e peça fundamental em sua ascensão, interpretada pela talentosa Monica Barbaro. Tudo isso acontece em meio a um período extremamente caótico nos Estados Unidos: Guerra Fria, a crise dos mísseis em Cuba, os assassinatos de John Kennedy e Malcolm X, e as marchas pelos direitos civis — eventos que influenciaram diretamente sua música e visão de mundo.

Dylan sempre foi um espírito livre, uma “metamorfose ambulante”, tal qual cantava Raul Seixas, recusando-se a se encaixar em rótulos ou categorias pré-definidas. Pessoas assim, de natureza indomável, muitas vezes acabam, mesmo sem intenção, magoando aqueles ao redor. O longa retrata isso através de sua relação com Sylvie (Elle Fanning), e a própria Joan Baez. Ambas enfrentam desafios ao se relacionar com alguém que constantemente escapa às expectativas e convenções sociais.

Não espero mais que atores se “desapareçam” dentro dos papéis como Jamie Foxx fez ao viver Ray Charles, mas Chalamet entrega os trejeitos de Dylan e, curiosamente, em certos momentos, lembra até Ricardo Ceratti, o lendário vocalista da banda argentina Soda Stereo.

No entanto, o que torna Um Completo Desconhecido instigante não é a tentativa de “decifrar” o biografado, mas a maneira como a trama celebra a música estadunidense dos anos 60 e a eterna guerra entre tradição e inovação. O ponto alto é a reconstituição do polêmico Festival de Newport de 1965, quando Dylan eletrificou seu som, trocando o violão pela guitarra, para desgosto dos puristas do folk. Um momento que teve momento parecido até no Brasil, lembrando a famosa “marcha contra a guitarra elétrica”, protagonizada por Elis Regina e Chico Buarque — que, anos depois, reconheceram o absurdo da situação.

James Mangold conduz bem esse turbilhão criativo, retratando com sensibilidade as tensões nos bastidores, a complexidade das relações pessoais de Dylan e, sobretudo, o impacto avassalador de sua música. As sequências musicais são poderosas — letras e melodias que emocionam de uma maneira muito mais autêntica do que em Bohemian Rhapsody, que, apesar das canções icônicas do Queen, é um filme fragmentado, perdido entre cenas que parecem colcha de retalhos.

Um Completo Desconhecido é, ao fim, mais do que uma biografia: é uma fábula sobre a liberdade criativa e uma celebração da música enquanto expressão irrestrita. Porque, no final das contas, Bob Dylan nunca foi só um homem — ele sempre foi várias versões de si mesmo, todas desconhecidas, todas geniais.

⭐️⭐️⭐️⭐️

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